As arquiteturas ARM e RISC-V tornaram-se fundamentais no desenvolvimento moderno de microcontroladores, microprocessadores e sistemas embarcados. Ambas seguem o paradigma RISC (Reduced Instruction Set Computer), que privilegia instruções simples, execução rápida e eficiência energética. Apesar disso, diferem profundamente em seus modelos de licenciamento, ecossistemas industriais, metodologias de implementação e no impacto que cada uma exerce na construção de SoCs (System-on-Chip).
Nesta primeira seção, apresento o panorama geral das duas arquiteturas, preparando o terreno para explorar suas vantagens, diferenças e relevância industrial. ARM consolidou-se ao longo de décadas como base para smartphones, IoT e sistemas embarcados, oferecendo uma plataforma madura, padronizada e apoiada por ferramentas industriais robustas. RISC-V, mais recente, surge como uma alternativa aberta, altamente modular e que permite liberdade total na implementação do ISA (Instruction Set Architecture), atraindo desde universidades até grandes fabricantes de semicondutores.
Fundamentos das Arquiteturas ARM e RISC-V
Tanto ARM quanto RISC-V pertencem à família de arquiteturas RISC, cujo objetivo central é reduzir a complexidade do hardware por meio de instruções simples, de formato regular e executadas em ciclos previsíveis. Esse modelo facilita o pipeline, reduz o consumo energético e permite que projetistas desenvolvam núcleos menores, mais rápidos e mais eficientes. No entanto, as duas arquiteturas seguem caminhos distintos no modo como organizam seu ecossistema e oferecem suporte aos desenvolvedores e fabricantes.
A arquitetura ARM é proprietária, licenciada pela ARM Ltd., e se destaca pela padronização rigorosa do ISA, dos modos de operação e dos blocos funcionais. Ao longo das décadas, formou-se um ecossistema extremamente sólido com ferramentas de desenvolvimento, compiladores otimizados, documentação industrial e uma grande variedade de perfis — Cortex-M para microcontroladores, Cortex-A para aplicações complexas, e Cortex-R para sistemas críticos em tempo real. A maturidade do ecossistema também trouxe vantagens como estabilidade, enorme número de fornecedores e integração consolidada com barramentos como AMBA (Advanced Microcontroller Bus Architecture).
Por outro lado, RISC-V foi criado como um ISA aberto e livre de royalties, permitindo que qualquer organização implemente sua própria CPU, altere extensões, ou crie novas instruções sem a necessidade de licenciamento. Isso trouxe um dinamismo inédito ao setor: universidades podem usá-lo para ensinar arquitetura de computadores sem custos, startups podem criar seus próprios SoCs personalizados e grandes fabricantes podem moldar o ISA às suas necessidades. A modularidade é um dos principais diferenciais: o núcleo mínimo RV32I pode crescer com extensões como M (multiplicação), A (atomics), F/D (ponto flutuante) e vetoriais (V), tornando-o escalável do IoT à computação de alto desempenho.
Vantagens da Arquitetura ARM
A arquitetura ARM consolidou-se como uma das mais empregadas no mundo, especialmente em dispositivos móveis, sistemas embarcados e equipamentos industriais. Sua principal vantagem é a maturidade do ecossistema: décadas de desenvolvimento contínuo resultaram em núcleos extremamente otimizados, documentação sólida, ferramentas
de depuração confiáveis e suporte de praticamente todos os fabricantes de semicondutores e fornecedores de software. Isso torna ARM uma escolha previsível e segura para produtos comerciais que exigem estabilidade e ampla disponibilidade de componentes.

Outra vantagem importante é o alto grau de padronização. Os núcleos Cortex seguem especificações rígidas, garantindo comportamento uniforme entre fornecedores diferentes. Essa consistência facilita a portabilidade de firmware, reduz riscos de incompatibilidades e simplifica certificações, especialmente em setores como automotivo, aeroespacial e médico. Além disso, ARM oferece um conjunto de tecnologias complementares, como a família de barramentos AMBA — AHB, APB e AXI — integrados à metodologia de projeto para SoCs. Com isso, a construção de sistemas complexos se torna mais previsível e modular, já que processadores, periféricos e controladores se conectam seguindo uma mesma lógica estrutural.
Por fim, ARM se destaca pela eficiência energética, um fator essencial em dispositivos móveis e IoT. A precisão com que os modos de operação, pipelines e instruções foram refinados ao longo dos anos permite atingir uma combinação equilibrada entre desempenho e consumo. Isso explica por que a maioria dos smartphones do mundo adota ARM, bem como milhares de microcontroladores industriais baseados em Cortex-M.
Vantagens da Arquitetura RISC-V
A arquitetura RISC-V destaca-se principalmente por sua natureza aberta, modular e extensível, permitindo que empresas, universidades e desenvolvedores criem suas próprias implementações sem custos de licenciamento. Essa liberdade gera um cenário de inovação acelerada, no qual é possível adaptar o ISA exatamente às necessidades do produto. Seja para um microcontrolador simples, seja para um acelerador de IA, o projetista pode escolher apenas as extensões necessárias—como multiplicação, ponto flutuante, operações atômicas ou mesmo extensões vetoriais—resultando em um núcleo altamente personalizado.

Outro benefício significativo é o fato de que o desenvolvimento de RISC-V é conduzido por uma comunidade global, apoiada por grandes empresas e instituições acadêmicas. Esse modelo colaborativo permite que o padrão evolua rapidamente e incorpore avanços de forma transparente. Diferentemente de modelos proprietários, a documentação é totalmente acessível, o que facilita pesquisas, ensino e adoção em países que buscam autonomia tecnológica. Além disso, ao não depender de licenças restritivas, RISC-V torna-se uma alternativa estratégica para governos e indústrias que desejam reduzir a dependência de fornecedores específicos.
Por fim, a flexibilidade da arquitetura permite criar SoCs extremamente otimizados, evitando instruções desnecessárias e abrindo espaço para ISAs híbridas que combinam RISC-V com aceleradores dedicados. Isso é especialmente relevante em aplicações de IA embarcada, microcontroladores de alto desempenho, sistemas de armazenamento, dispositivos IoT e até servidores de alto throughput. A possibilidade de adicionar instruções customizadas habilita ganhos de desempenho que seriam difíceis de obter em arquiteturas proprietárias mais rígidas.
Comparativo Direto: ARM vs RISC-V
A comparação entre ARM e RISC-V vai além do ISA. Envolve maturidade industrial, disponibilidade de ferramentas, padronização, liberdade de implementação e, principalmente, a filosofia por trás de cada arquitetura. ARM representa estabilidade, consistência e um ecossistema consolidado. RISC-V representa flexibilidade, independência tecnológica e inovação aberta. Ambas coexistem no mercado, mas cada uma atende interesses e estratégias diferentes.
Do ponto de vista industrial, ARM oferece uma cadeia de suprimentos extremamente robusta: fabricantes de semicondutores, ferramentas de teste e depuração, RTOS (sistemas operacionais de tempo real) consolidados e documentação padronizada. Essa base facilita o desenvolvimento de produtos comerciais, reduz riscos e acelera o time-to-market. Já RISC-V ainda está em expansão, mas cresce rapidamente devido à ausência de royalties, à possibilidade de customização agressiva e ao interesse de governos e empresas em reduzir dependência tecnológica de poucos fornecedores.
Do ponto de vista técnico, ARM possui um ISA coerente, estável e amplamente otimizado para consumo e desempenho. Suas famílias Cortex-M, A e R são maduras e atendem bem desde IoT até sistemas automotivos e smartphones de alto nível. RISC-V, em comparação, oferece simplicidade estrutural e um conjunto modular de extensões, permitindo criar CPUs minimalistas ou processadores de alto desempenho com instruções vetoriais modernas. No entanto, o ecossistema de ferramentas, embora avançando rapidamente, ainda não alcança a solidez do ambiente ARM.
Na construção de SoCs, ARM supera em padronização: o conjunto AMBA (AXI, AHB, APB) forma uma espinha dorsal industrial, com interoperabilidade garantida. RISC-V, por outro lado, não define um padrão único de barramentos. Assim, cada fabricante pode adotar AXI, Wishbone, TileLink ou qualquer outro protocolo. Isso gera grande flexibilidade, mas também pode resultar em fragmentação, exigindo mais disciplina de engenharia no desenvolvimento de plataformas maiores.
Além do ISA: Metodologia de Projeto, IP Cores, Barramentos e Construção dos Circuitos Integrados
A diferença mais profunda entre ARM e RISC-V não está apenas no conjunto de instruções, mas sim na metodologia de desenvolvimento dos circuitos integrados. ARM segue um modelo tradicional baseado em licenciamento de IP cores: o fabricante adquire núcleos prontos (Cortex-M, A, R), validados e certificados, e os integra no SoC junto ao barramento AMBA. Esse modelo garante previsibilidade, suporte técnico forte e uma base já otimizada para diferentes processos de fabricação. Na prática, isso significa que o projetista recebe um bloco funcional estável, com desempenho amplamente documentado, reduzindo incertezas e acelerando o desenvolvimento de sistemas complexos.
RISC-V adota um caminho diferente. Por ser um ISA aberto, permite uma variedade enorme de implementações independentes, desde núcleos acadêmicos até IPs comerciais de alta performance. Essa pluralidade estimula inovação, mas exige atenção: nem todos os núcleos possuem o mesmo nível de maturidade, ferramentas ou certificações. A liberdade metodológica também se reflete na interconexão: enquanto ARM utiliza o padrão AMBA como eixo central dos SoCs, RISC-V pode ser integrado a barramentos como AXI, TileLink, Wishbone, AHB ou interconexões customizadas. Essa flexibilidade possibilita arquiteturas híbridas e soluções altamente otimizadas, embora possa aumentar o esforço de engenharia para garantir compatibilidade.
Na construção física do chip, ARM oferece kits de desenvolvimento (PDKs), documentações e fluxos de verificação ajustados para processos industriais específicos, o que beneficia fabricantes que desejam previsibilidade em aspectos como consumo, interferência e resposta temporal. Já RISC-V abre portas para metodologias experimentais, permitindo que empresas criem pipelines próprios, integrem aceleradores (como IA e DSPs) e definam até mesmo instruções privadas, resultando em diferenciação extrema no mercado. Assim, enquanto ARM prioriza padronização, RISC-V prioriza liberdade — e essa diferença molda profundamente a filosofia e o futuro de cada ecossistema.
Conclusão: Dois Caminhos para o Futuro dos Processadores
ARM e RISC-V representam visões distintas sobre arquitetura de processadores, e ambas continuarão relevantes por muitos anos. ARM segue fortalecida por sua maturidade, padronização, ferramentas consolidadas e ampla presença industrial. É a escolha natural para aplicações que exigem previsibilidade, certificações, estabilidade de longo prazo e suporte bem estabelecido, desde microcontroladores até smartphones de alto desempenho. Sua cadeia de ferramentas, documentação consistente e a robustez do ecossistema AMBA permanecem como grandes diferenciais.
RISC-V, por sua vez, simboliza a abertura, a soberania tecnológica e a capacidade de inovação descentralizada. Ao não depender de licenças ou royalties, torna possível criar soluções altamente customizadas, integrando apenas as extensões necessárias e até instruções privadas para acelerar cargas de trabalho específicas. Essa liberdade atrai universidades, startups, centros de pesquisa e governos. Sua modularidade torna RISC-V capaz de competir em múltiplas frentes, desde microcontroladores ultracompactos até sistemas de IA de alto desempenho.
No cenário global, ARM tende a manter sua hegemonia em mercados consolidados, enquanto RISC-V expande terreno em nichos que valorizam custo reduzido, flexibilidade arquitetural e independência tecnológica. A indústria já caminha para modelos híbridos, onde SoCs combinam núcleos heterogêneos, aceleradores e subsistemas especializados — muitas vezes misturando IPs prontos com implementações abertas. Assim, a disputa entre ARM e RISC-V não é apenas uma comparação técnica, mas um reflexo das necessidades e estratégias da indústria moderna de semicondutores.